"Al Hallaj diz: O véu? É uma cortina interposta entre o que procura e o seu objeto, entre o noviço e o seu desejo, entre o atirador e seu alvo. Devemos esperar que os véus só existam para as criaturas, não para o Criador. Não é Deus que usa um véu, mas as criaturas" MASH , 699-700.
O elemento véu trás a oportunidade de expressão da leveza e liberdade. Remete ao simbolismo sutil que separa a vida da morte, o oculto do revelado.
O véu trás à tona o segredo da feminilidade. Terá o elemento véu uma ligação direta com o útero? Representaria talvez a frágil camada que o recobre, o endométrio, que quando não há promessa de vida, se desfaz, dando lugar à regeneração?
A vivência com o véu na dança possui um significado muito superior à classificação enciclopédica do pano, em geral transparente, (...) que as mulheres usam para cobrir o rosto, a cabeça, ou ainda como adorno.
Na intenção de desfazer a polêmica em torno do "uso" tradicional ou não do véu na dança, realizei uma pesquisa minuciosa, como forma de contestar os relatos que o julgam como um mero "objeto cênico" introduzido pelas bailarinas russas e perpetuado pelas norte-americanas até a atualidade.
Muito mais que um objeto cênico sua existência histórica traduz evidências de significados rituais e profundos.
Para entender o quanto o uso do véu na dança é antigo, precisamos inicialmente retroceder ao século trezentos e cinco antes de Cristo.
O local é a Alexandria, em árabe al-Iskandariyya, principal porto e Segunda cidade do Egito.
Fundada por Alexandre em 332/331, tornou-se capital do reino dos lágidas (305-30 a.C.), que fizeram dela uma metrópole intelectual e artística do mundo helenístico.
A região conhecida como "bairro do Delta" foi a sede de uma importante comunidade judaica de língua grega. Desta aliança de duas culturas nasceram o livro dos Macabeus, o livro da Sabedoria, a tradução grega da Bíblia dita "Versão dos Setenta" e a obra do filósofo Fílon. Em 30 a.C. Alexandria tornou-se a capital da província romana do Egito. A Igreja de Alexandria também teve um papel de grande relevo no desenvolvimento do cristianismo com Santo Atanásio e São Cirilo. Os pensadores cristãos de Alexandria chegaram mesmo a constituir, com Clemente e Orígenes, uma grande escola de teologia, cujo método especulativo, rico em alegorias se opôs á exegese histórica e literal da escola de Antioquia. A tomada da cidade pelos árabes (642) pôs fim ao prestígio alexandrino. Entretanto, na Idade Média, Alexandria foi uma praça comercial próspera; a partir do século XIV, pisanos, genoveses e venezianos gozaram de privilégios importantes redistribuindo na Europa os produtos do Oriente em troca de armas e de escravos dos Balcãs. Como entreposto dos venezianos, foi o mais importante centro de redistribuição das especiarias da Europa, nos séculos XIV e XV. Após a descoberta do "caminho marítimo das índias", pelos portugueses, a atividade comercial diminuiu. Em 1517, a cidade foi ocupada pelos turcos. Bonaparte tomou-a em 1798. Alexandria só recuperou sua importância no séc. XIX.
Vários museus demonstram o passado da cidade; a necrópole de Anfuqui (séculos III-II a.C.) e as catacumbas de Kon el Chugafa (séculos II-I a.C.) ilustram os diversos aspectos da arte greco-egípcia.
A Biblioteca de Alexandria, a mais célebre biblioteca da Antiguidade foi fundada por Ptolomeu Sóter. Inicialmente organizada por Demetrius Phalereus a partir de sua experiência anterior na biblioteca de Atenas. Reuniu filósofos, matemáticos, pesquisadores em diversas área e tradutores, todos assalariados. Teria possuído cerca de 700.000 obras poéticas, literárias e científicas, em grande parte traduzidas para o grego das diversas línguas do Mediterrâneo, Oriente Médio e Índia. Incendiada em 47 a.C. após a entrada de César em Alexandria, foi reconstruída e novamente destruída em 319.
A partir destes dados fica fácil entender a fusão das culturas greco-romana (européia), egípcia, indiana, árabe e judaica.
Fazendo um breve exercício de memória, perceberemos a presença do véu em diferentes épocas e culturas. Afinal, para os povos orientais a produção, tingimento e tecelagem é considerada uma tradição antiquíssima.
Na cultura árabe na atualidade, o véu se faz presente no traje feminino cotidiano das muçulmanas. E até mesmo as mulheres ocidentais quando vão ao Egito, são de certa forma obrigadas a usá-lo para não entrar em choque com a cultura local.
Voltando às questões históricas relativas à Alexandria, outro fator muito interessante é a função mercadológica da cidade possibilitando o intercâmbio cultural, filosófico-científico e artístico entre as culturas oriental e ocidental.
Segundo minhas pesquisas, o véu era utilizado na dança e no teatro desde o 3º século antes de Cristo, conforme comprova a escultura da Dançarina de Alexandria encontrada no Museu Metropolitano de Arte de Nova York.
As fotos abaixo permitem examinar cuidadosamente os 4 ângulos dessa peça, e a descrição fornecida pelo Museu, não deixa dúvidas de que se trata de uma dança (muito semelhante à dança do ventre , diga-se de passagem)
Estatueta da velada e mascarada dançarina , 3º século/ 2º século A.C. (Antes de Cristo); Helenística Grega - Bronze; 20,5 cm de altura - Doada por Walter C. Baker, 1971 |
Descrição do Objeto segundo o Museu Metropolitano de Arte - Nova York:
"O movimento complexo desta dançarina é transmitido exclusivamente através da interação do corpo com diversas camadas do traje. Sobre a roupa debaixo que cai em dobras profundas e arrasta pesadamente a calda do vestido (ou saia?), a figura usa um manto de pouco peso, um excedente esticado sobre sua cabeça e um corpo desenhado pela pressão aplicada a ela por seu braço direito, mão esquerda, e pé direito. A sua substância é comunicada pela alternação dos plissados afiados e as superfícies planas como se, pelo contraste deles, ambas as dobras tubulares empurrassem completamente para baixo o livremente delicado ondulado da franja.
A face da mulher é coberta pelo mais transparente dos véus, discernida em sua borda abaixo da linha de seus cabelos e dos entalhes para os olhos.
Seu pé direito prolongado mostra um chinelo atado (sapatilha?). Esta dançarina foi identificada convincentemente como uma das artistas de teatro profissionais, uma combinação de atriz e de dançarina, pelas quais a cidade cosmopolita de Alexandria era famosa na antiguidade."
O simbolismo do véu para os povos do Oriente é ancestral, possuindo conotações sagradas, como explica o texto abaixo:
"Hijab , véu, quer dizer em árabe, o que separa duas coisas. Então, véu significa - dependendo se é usado ou retirado - o conhecimento oculto ou revelado. Assim, na tradição cristã monástica, tomar o véu significa separar-se do mundo, mas também separar o mundo da intimidade na qual entramos numa vida com Deus. O Corão fala do véu que separa os condenados dos eleitos (7, 44). Deve-se falar às mulheres por trás do véu. Os incrédulos dizem ao Profeta: Há entre nós e tu um véu (41,4). Deus só fala ao homem através da revelação ou através de um véu (42), como foi o caso de Maomé.
No Templo de Jerusalém, um véu separava o Santo dos Santos, e um outro Vestíbulo do Santo. Foi dito (Mateus, 27, 51) que, no momento da morte de Cristo, o véu rasgou-se de alto a baixo. Esse rasgo mostra a brutalidade da Revelação operada pelo desvelamento, que possui um sentido iniciático: a Revelação à Lei Antiga: Não há de encoberto que não venha a ser descoberto (Mateus, 10, 26). O mesmo acontece no Islã: Retiramos o teu véu; hoje tua vista é penetrante (Corão, 50, 21).
Alguns estudos sugerem que a retirada do véu - ou de sucessivos véus e sua relação com os Deuses egípcios Ísis e Osíris representa manifestamente a revelação da luz. Conseguir levantar o véu, diz Novalis, no seu Lehrling zu Sais, é tornar-se imortal; e ainda: Um homem conseguiu levantar o véu da Deusa Sais. Mas o que se viu? Viu o milagre dos milagres - a si mesmo."
Nos próximos artigos, pretendo aprofundar a análise de elementos míticos e históricos que revelam a importância do símbolo véu, sua presença nos ritos, a controversa argumentação sobre sua utilização na dança do ventre e o uso terapêutico do véu na meditação ativa.
Fonte:
http://www.tribosdegaia.com.br/htm/artigos/liberia04.htm
Libéria Al Khadir
1-MASSIGNON L.,La passion d'Al-Hallaj, 2 vols. Paris, 1922.
2-CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos - Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. - José Olympio Editora - 9ª edição, pág. 950.
3-PORTINARI, Maribel. História da Dança - Editora Nova Fronteira, 1989, pág. 19.
4-Grande Enciclopédia Larousse Cultural - vol. 30 pág. 6054.
5- Grande Enciclopédia Larousse Cultural - vol. 2 pág. 180.
6- Fotos obtidas através do site: www.metmuseum.org/collections/view1.asp?dep=13&mark=1&full=0&item=1972%2E118%2E95#a
7- Museu Metropolitano de Arte - The Metropolitan Museum of Art - 1000 Fifth Avenue at 82nd Street
New York, New York 10028-0198
8- Tradução de Tatiana Molero Barriga. Texto original em inglês:
The complex motion of this dancer is conveyed exclusively through the interaction of the body with several layers of dress. Over an undergarment that falls in deep folds and trails heavily, the figure wears a lightweight mantle, drawn taut over her head and body by the pressure applied to it by her right arm, left hand, and right leg. Its substance is conveyed by the alternation of sharp pleats and flat surfaces as well as by their contrast to both the tubular folds pushing through from below and the freely curling softness of the fringe. The woman's face is covered by the sheerest of veils, discernible at its edge below her hairline and at the cutouts for the eyes. Her extended right foot shows a laced slipper. This dancer has been convincingly identified as one of the professional entertainers, a combination of mime and dancer, for which the cosmopolitan city of Alexandria was famous in antiquity.
9-CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos - Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. - José Olympio Editora - 9ª edição, páginas pág. 950.
10-CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos - Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. - José Olympio Editora - 9ª edição, páginas pág. 950.
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