sábado, 17 de janeiro de 2015

O Véu e a Dança do Ventre - parte 3 (arquétipo de Salomé)

"Para viver uma vida criativa, precisamos perder o medo de estar errados."
Joseph C. Pearce

"Fui e ainda sou um buscador, porém, deixei de interrogar estrelas e livros.
Comecei a ouvir os ensinamentos que o meu sangue sussurra para mim."
Herman Hesse
“Quem olha para fora sonha; quem olha para dentro acorda.”
C. G. Jung
“A análise deve liberar uma experiência que nos aprisiona ou nos advém de cima, uma experiência
que tem substância e corpo, tal como as coisas que ocorreram com os antigos.”
C. G. Jung
Mítica, glamourosa e proporcionalmente fantasiosa, a dança dos 7 véus é uma criação ocidental feita para hollywood.
Pesquisando as representações femininas cananeias, sumérias, assírias, babilônicas presentes em templos na Ásia Ocidental e nas pirâmides do Egito, observamos uso de pouca ou nenhuma roupa pelas sacerdotisas e Deusas. O que se contrapõe à influência greco-romana de longas vestes e uso de véus como ornamentos presentes na escultura que examinamos no primeiro artigo (Dançarina de Alexandria).
É comum ouvir professoras e alunas dizendo que a Dança dos 7 véus (em alguns casos são 9 ou mais véus), representa a abertura e harmonização dos chakras.
Vejam, dizer simplesmente que algo representa algo é muito fácil. Eu não duvido dos benefícios de qualquer prática corporal que alie movimento à significação, pois de fato os resultados podem ser surpreendentes. Mas daí a rotular uma dança que na verdade é uma interpretação moderna de uma história mal contata e mal documentada é um verdadeiro risco, tanto às mestras (que já foram alunas e por isso contam a história sem qualquer fundamento) quanto às alunas que se deixam levar por essas histórias sem analisar o que pode haver por trás delas. E as mesmas, inocentemente vão propagar as mesmas histórias, com um leve toque pessoal, sem pesquisar, sem questionar. Simplesmente aceitando e reproduzindo.
A ligação das cores dos véus com o chakras é uma invenção moderna. É necessário esclarecer que o estudo da cultura, filosofia e medicina oriental são primordiais para compreensão e discernimento de tais afirmações. Por exemplo, está claro para os indianos e chineses a realidade dos chakras (centros energéticos) e as ligações entre esses centros, os pontos magnéticos (meridianos) e suas relações diretas com os órgãos vitais do corpo. Por outro lado, deve ficar claro para o ocidental que os centros de energia denominados chakras estão localizados exatamente na posição das principais glândulas do nosso corpo e as mesmas tem fundamental influência no equilíbrio hormonal, na circulação sanguínea, no bom funcionamento dos nossos órgãos vitais e principalmente na manutenção do nosso sistema imunológico.
Compreendemos também que o sistema nervoso, vai além do cérebro e a partir da coluna vertebral irradia impulsos elétricos por todo o corpo. Qualquer desequilíbrio que atue em nível neurofisiológico compromete todo o corpo de maneira direta ou indireta. Já o mal funcionamento de um órgão vital ou uma glândula, também será refletido na parte neurológica e manifestará consequências em nível psicológico, como: alterações no humor; depressão; obsessão; compulsão; alta ansiedade entre outros sintomas.
O mesmo ocorre quando em nível psicológico trabalhamos conteúdos de forma indiscriminada causando prejuízos. Ao invés de cura temos a somatização.
O que percebemos ao pesquisar esse assunto, é que a percepção do movimento corporal, aliado ao uso de um “objeto cênico”, que prefiro chamar de “objeto inspirador” e, da profundidade dos significados pessoais podem levar à múltiplas possibilidades na interpretação artística. O correto direcionamento da experiência pode levar o indivíduo à cura física e harmonização dos conteúdos psíquicos.
Voltemos à Dança dos 7 véus, para descrever um exemplo bem específico. Rudolf Laban, criador da Dança Moderna, cita a construção cênica elaborada por uma bailarina. Esse texto data de aproximadamente 1958, e é continuamente utilizado por professoras de dança do ventre (sem citar a fonte original) como documento comprobatório para afirmar a veracidade da Dança dos 7 véus. Laban registra um breve relato da história de Salomé que consta nos Evangelhos de Mateus e Marcos. Em seguida, reproduz as anotações da aluna, cuja imaginação fértil criou sentenças que seriam pronunciadas pelos lábios de João batista após sua cabeça ter sido decapitada. O texto é bastante extenso, por esse motivo irei reproduzir apenas as sentenças que mencionam os 7 véus:
"Balança tua cabeça de lá para cá e bata em teu peito como fiz ao te ver pela primeira vez. Fica imóvel, incapaz de mover um membro sequer, tal como fiquei com meu crescente terror frente à vida. Lança fora o véu de meu rubor e pula; pula bem alto: tu não conseguirás escapar."
Vôa, fuja - se puderes - eu estou em toda parte. Tu estás te sentindo torturada e completamente enroscada: arrasta-te mais e mais perto de minha cabeça e despedaça-a completamente. Esse, o segundo véu é o véu de meu horror.
Erga, Salomé, o terceiro véu, o véu de meu orgulho quebrado.
Puxa-o, o quarto véu, o véu de minha ira e de meu ódio, Salomé.
O quinto véu é o véu da minha alma meditativa.
Chega mais perto, Salomé, mais perto de mim, mais perto ainda, e leva embora meu sexto véu, o véu de meu amor.
E agora, Salomé, erga o último véu, o sétimo, com cautela e suavidade, o véu de meu desespero, e enterra meus lábios mortos entre teus seios em botão."
Essa interpretação reproduzida por Laban opõe-se radicalmente às cenas do filme Hollywoodiano “Salomé”. Aliás, após ler o texto completo em questão e juntamente com algumas alunas rever o filme, as opiniões foram as mais variadas. São visões a respeito do que poderia ser um fato, mas que não há nada que possa comprovar a intenção da dança e a possível “culpa” ou “inocência” de Salomé ao realizá-la.
Na Bíblia há uma sutil diferença entre o relato de Mateus (14, 1-11) e o de Marcos (6,17-28), sendo que o de Marcos se assemelha mais à visão do filme demonstrando a possibilidade de Herodíades, a mãe de Salomé ter decidido por ela qual seria o prêmio pela bela apresentação. De qualquer forma os dois relatos dizem que a cabeça foi entregue à Salomé porque a mesma teria dito ao Rei Herodes a decisão da mãe.
Não há nada na Bíblia que comprove a interpretação do texto citado por Laban, ou seja, onde Salomé pareceria obcecada por João Batista a ponto de preferir sua cabeça numa bandeja à vê-lo vivo e inacessível a ela por conta da religião. Pelo contrário, a Bíblia é clara em afirmar que a divergência entre Herodes e João Batista era política e ideológica, pois esbarrava na expansão do cristianismo, nas revoltas do povo contra seu reino e na questão dele casar-se com Herodíades, sendo ela ex-esposa de seu irmão Herodes I, e essa foi a verdadeira causa de sua morte.
Outro fato importante é que a genealogia de Salomé aponta seu casamento com Filipe e, após a morte do marido, um novo casamento onde ela teria gerado 3 filhos. Portanto, nada que comprove a paixão pelo profeta.
Embora os pintores orientalistas dos séculos XVIII e XIX representem de forma diversa a história de Salomé, o único fator que poderia comprovar que sua dança é a “Dança Ancestral do Ventre”, não a dança que conhecemos hoje, mas sim a que se origina dos rituais em Templos na Antiga Mesopotâmia (e até mesmo anterior a este período) perpetuada pelos Egípcios como muitas das heranças dessas culturas, diz respeito aos rituais femininos de fertilidade e da dança como homenagem aos sacerdotes e iniciados.
Na Antiga Mesopotâmia havia uma Deusa chamada Belili (associada à Belit, Bélis e na Suméria, Inanna), irmã e esposa de Dumuzi Deuses anteriores à forma Babilônica Ishitar e Tammuz. Ambos eram Deuses da vegetação e fertilidade e ambos habitavam o mundo subterrâneo.
Em todas as cidades da antiga Suméria se ergueram templos consagrados ao culto de Belili (Inanna) e de seu esposo Dumuzi. O rei de cada cidade personificava Dumuzi e a suma sacerdotisa personificava Belili (Inanna) na cerimônia anual de matrimônio com a qual se tentava garantir a prosperidade, a saúde e a concórdia.
Uma das versões do mito relata que Dumuzi era originalmente mortal até descer ao submundo e casar-se com Belili (Inanna). A partir disso Dumuzzi fica imortal e recebe a companhia da divindade Nigizzida (representada por uma serpente), vivendo e permanecendo no portal do céu.
O encontro de Dumuzi e Belili regulava as estações da natureza. Durante seis meses eles vinham à superfície trazendo calor e fertilidade. Nos seis meses restantes Belili retornava ao mundo subterrâneo e Dumuzi voltava ao portal do céu. No equinócio de outono, o início do novo ano para os Mesopotâmios, Dumuzi retornava à terra onde relacionava-se com sua esposa, trazendo novamente a fertilidade para animais e plantas.
Mito Sumério, Inanna desce ao mundo subterrâneo e torna-se esposa de Dumuzi. Alguns relatos comparam o mito de Inanna ao de Astarte e Ishtar:
Analisando o mito, podemos refletir sobre a existência de 7 portais e seus significados ocultos. Por outro lado, não há nada que comprove a existência dos véus de diferentes cores ou que justifique a intenção de Salomé em dançar com o objetivo de matar João Batista pela frustração de não poder seduzir um homem “religioso e casto”.
Entramos aqui num ponto importante de reflexão: O que se esconde por trás dos véus? Qual a intenção em associar a sedução de uma mulher à morte de um homem religioso e casto?
Será a mesma intenção que associou a mulher à figura da “serpente mentirosa” e que propositadamente, fez Adão mortal, transformando Lilit num demônio e Eva em traidora, expulsando-os do paraíso no Mito Judaico-Cristão?
Ou será ainda a mesma que associou o uso do véu à ocultação do corpo da mulher nos rituais religiosos, sob a alegação de que a visão da mulher afasta o pensamento do homem de Deus?
Nos tempos primevos a ligação do homem com a divindade se dava através da mulher que representava a natureza em sua manifestação plena e simbolizava o mistério da vida.
A religião é um sistema político. As raízes etimológicas para a palavra religião são: re-ligare e re-legere que significam re-ligação ou re-conhecimento, re-leitura. Aceitando essa crença admitimos que o ser humano está à procura de algo que perdeu, assumindo a ligação espiritual como desfeita (ou mal-feita), o que impede que o conhecimento direto da divindade aliado à experiência espiritual de plenitude por algum motivo não podem ser compreendidas através dos 5 sentidos físicos e da inteligência. O papel da religião é, portanto, doutrinar e intermediar a relação entre o homem e a divindade.
Essa crença imposta à grande maioria das pessoas desde o nascimento, motivo pelo qual muitas delas desenvolverão problemas de baixa auto-estima e auto-imagem, além da falta de confiança em seu potencial artístico, criativo-sexual, são características atribuídas ao feminino arquetípico, que relegadas à discriminação, sujeitas à maledicência, à condenação ao inferno pelas ortodoxias religiosas, transformar-se-ão em frustrações em todas as áreas da vida dessas pessoas.
A Deusa Mãe de outrora é simbolizada hoje nas representações cristãs de Maria, onde ao ser mãe a mulher, deixa de ter sexualidade, perde a capacidade de sedução e de gerar por sua própria vontade. Ela passa a gerar apenas com a permissão de Deus, como se a vida só fosse uma benção se gerada por algo fora do corpo, ou seja, como se o corpo fosse impuro e desligado da alma.
Chega a ser irônico falar sobre “a célula máter da sociedade” e acreditar de fato que “a Grande Mãe”, tornou-se a escrava sexual do “Grande Pai”.
A sexualidade que foi outrora o maior mistério da criação e que representa a origem da vida humana, hoje é desvelada como mero processo do acaso, ou seja, de corpos que se encontram ocasionalmente, por acidente dispensam células e geram uma vida.
Por outro lado temos mulheres que não conseguem engravidar. E através da dança, da vontade, da persistência e amor por si mesmas, ultrapassaram as barreiras das crenças preconceituosas e da somatização das mesmas em seu corpo.
Essas mulheres sentem que o véu, não importando sua cor, tamanho ou textura é um veículo para a consciência da própria pele. Ampliam o sentido do tato compreendendo o poder do toque na cura e transformação internas. Abrem seus corações para a descoberta da identidade essencial.
O arquétipo que Salomé representa precisa ser urgentemente compreendido, pois enquanto houver a visão de que o corpo deve ficar separado da alma porque a alma é pura e pode ser aniquilada pela sedução do corpo, teremos cada dia mais homens e mulheres separados uns dos outros. Mulheres buscando seduzir, homens buscando sexo ocasional. Mulheres tentando engravidar e homens se sentindo impotentes diante de tal situação. Mas isso é assunto para um outro artigo.
Portanto, não há nada que possa comprovar que Salomé dançou com véus a não ser a existência do filme hollywoodiano. E a livre associação dos mitos de Inanna, Belili, Astarte e Ishtar, com a específica “dança dos sete véus”, se deve ao ato de vontade, liberdade e criatividade das bailarinas, coreógrafas(os) e diretores de arte.

Fonte: 
http://www.tribosdegaia.com.br/htm/artigos/liberia06.htm
http://www.tribosdegaia.com.br/htm/artigos/liberia07.htm

Referências Bibliográficas:
LABAN, Rudolf. Domínio do Movimento - Summus Editorial - 1978, pág. 246-255.
FUX, Maria. Dança, Experiência de Vida - Summus Editorial - 1983.
JOHNSON, Robert A. SHE - A Chave do Entendimento da Psicologia Feminina - Mercuryo, 1996.
LELOUP, Jean-Yves. O Corpo e seus Símbolos - Uma Antropologia Essencial - Editora Vozes, 2002.
MONTAGU, Ashley. Tocar: O Significado Humano da Pele - Summus Editorial - 1988.
PENNA, Lucy. Dance e Recrie o Mundo: A Força Criativa do Ventre - Summus Editorial - 1993.
COTTERELL, Arthur. Mitos e Lendas - Vol. I e II - Atlas do Extraordinário - Edições Del Prado – 1996 pág. 14, 15, 18,19, 65, 107,110
Bíblia Sagrada – Edições Loyola, São Paulo Brasil, 1989.

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